top of page
Painel de madeira

Para uma Perspectiva mais Além

Por Ricardo P Nunes

preview_01392889_001.jpg

  As velhas anedotas que deliciaram leitores do mundo todo como curiosas excentricidades do exótico mundo antropológico, como a de que integrantes de determinada tribo seguraram pelo gume da lâmina o punhal que em seu primeiro contato certo explorador lhes oferecera como presente, não fariam muito sentido agora, e muito menos ainda no campo de interpretação das relações entre pessoas e coisas a que chegou Catherine V. Howard depois de dois anos entre os índios Waiwai em meados da década de 1980.

   Segundo o que podemos depreender de um dos artigos em que a antropóloga da University of Chicago melhor sintetizou sua percepção[1], os objetos não são apreendidos senão dentro de um complexo cultural que se lhes apropria e lhes confere significado dentro das relações de prestações e contraprestações embutidos nos intercâmbios materiais e simbólicos entre os próprios Waiwai, entre eles e outras tribos, ou mesmo entre eles e a sociedade nacional. Ou seja, embora se vissem os Waiwai utilizando-se largamente de artefatos trazidos pelo contato com o homem branco, faziam-no com uma interpretação semântica específica e uma noção distinta de valores[2].

 

 

 

 

 

 

 

  Howard conclui que essa forma de assimilação comportaria um modelo de despercebida “resistência cultural” indígena, de uma forma de “apropriação interétnica”. Podemos ir aqui um pouco mais além da proposta da autora. Das análises dos dados prévios com que postula um contato já remoto dos chamados povos das guianas com tais utensílios exógenos ─ anterior à relação contínua e sistemática com os missionários entabulada desde fins da década de 1940 ─, embora muitas vezes um contato apenas indireto ou mesmo fortuito, poder-se-ia conceber a cultura humana, sobretudo, ou pelo menos, a cultura material, como contida numa totalidade, como uma rede entrelaçada de fenômenos físicos. Se não como um todo integrado, ao menos como algo difuso, um complexo contínuo em que, metaforicamente falando, os hiatos existentes entre as diversas sociedades, por mais profundos que possam parecer, são apenas matizes de um espectro cujas tonalidades são reforçadas ou desbotadas de acordo com a intensidade e a qualidade das trocas estabelecidas entre elas.

  Isto nos poderia remeter a três antigos e já superados debates: ao monogenismo, à doutrina da unidade psíquica e ao difusionismo. Por outro lado, entretanto, nos afasta de uma visão analítica ingênua do mundo, ou do conceito de cultura, que o enxerga através de uma espécie de míope lente estratigráfica; e pressupõe a necessidade do abandono das teorias e conceitos da cultura acomodados numa forma, como algo cujo conteúdo seria estanque, puro e que se cristalizada dentro de um quadro social dado, modelos arquetípicos sem equivalentes na dinâmica realidade da vasta teia das relações interétnicas.

 O processo de descolonização do pós-guerra[3], a “redescoberta” da sociologia compreensiva de Max Weber, a teoria da ação-social parsoniana, assim como a hermenêutica[4], a fenomenologia e o ambientalismo ativista foram alguns dos elementos circunstanciais que vinham colaborando de modo mais profícuo com uma mudança de paradigma no campo antropológico desde fins dos anos de 1960. Isso talvez em alguma medida tenha-se refletido em certo desuso, certa inviabilidade na aplicação dos consagrados métodos de pesquisa dos povos tribais de outras regiões do globo aos estudos etnológicos amazônicos que começavam a se desenvolver de forma mais sistemática naquela ocasião. A ponta do fio de Ariadne perdido que outrora se precisava encontrar para compor uma tela sobreposta a modelos comparativos indo-europeus, como os arranjos de parentesco, as hierarquias, a propriedade ou a organização política, e mais tarde para tentar alinhavar uma rede estrutural superogânica onde se articulariam funções institucionalizadas, agora se havia transmutado numa complexa e solta filigrana de símbolos e significados autorreferenciados, ou seja, que apenas poderiam ser destecidos ─ para serem antes compreendidos que pretensiosamente explicados ─, nos termos daquela própria cultura[5].

  Assim é que aquele continuum cultural difuso que serve de pano de fundo subjacente à “domesticação das mercadorias” de Catherine V. Howard ─ embora não se deva a ele (se é que chegou a ser assinalado) a inspiração para uma aplicação mais ampla do seu princípio ─, está em alguma medida pressuposta também sob as ideias centrais dos trabalhos de maior fôlego especulativo oriundos da pena de antropólogos como Philippe Descola, Eduardo Viveiro de Castro e Marilyn Strathern. A noção de alma, corpo e seus fluidos como algo fisicamente imanente ao universo e ao tempo circundantes ameríndio; a de uma versão de animismo dessacralizado na cosmologia nativa amazônica; a do conceito de perspectivismo na visão de mundo dessas etnias como um avesso do relativismo; etc, nesses pensadores culturais constituem-se a partir de uma apreensão daquelas sociedades como algo intrinsecamente constituído de um amálgama de identidade ontogenética entre o eu e o outro, seja este outro físico ou abstrato, seja ele natural, espacial ou temporal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cunhambebe: homem-onça

 

  Para a consolidação dessa etnologia, um fator epistemológico fundante também se fez necessário: a ideia de que o pensamento norocidental, ou científico, desenvolveu-se desde o humanismo a partir da separação entre ente e objeto, ou entre ser e mundo[6]. Além disso, postulou-se a mentalidade ameríndia como regida por uma compleição ternária, ou seja, não havia eludido nem transcendentalizado seu vetor divinal ou “mágico”, o que diferia substancialmente da epistemologia científica indo-europeia, obrigada a pensar objetivamente o mundo sob apenas dois alicerces principais: natureza e cultura.

  Não sei se alguém já se aventurou a fazer uma crítica a favor das bases epistêmicas do pensamento ocidental. Poder-se-ia aventar, por exemplo, o válido argumento de que, não fossem por esses meios, sequer se poderia avançar até a teoria do perspectivismo de Viveiros de Castro e muito menos ao neo-animismo de Descola, ou que a separação entre res cogitans e res extensa proposta por Descarte, assim como as categorias do pensamento kantianas, são apenas métodos didáticos ou heurísticos para organizar o pensamento e definir claramente o objeto do entendimento humano sem os quais ainda estaríamos patinando nos imbróglios tripartites da metafísica medieval. Como a contemporalidade talvez seja, ou deveria ser, um dos principais atributos do antropólogo, devemos, portanto, contra-argumentar que não se trata de uma axiologia de dotes epistemológicos, mas simplesmente de identificar como na prática se dá o pensamento ameríndio e como se pode chegar a compreendê-lo.

  Ora, o mundo, o que equivale a dizer aqui: a cultura ameríndia (nela incluídos os indivíduos mesmos, com seus corpos e suas mentes) como manifestação desse continuum onde se dão as diferentes maneiras de se viver, e que as reproduz no devir das interrelações dos próprios entes que o habitam, humanos ou não-humanos, não poderia deixar de implicar mesmo em suas margens também aquele observador que o perscruta crendo que o transcende, isto é, o antropólogo e sua cultura. Ao postular o perspectivismo, para citarmos uma das célebres originalidades na etnologia amazônica, para torná-lo inteligível, requer-se um mínimo grau de pensamento selvagem lévi-straussiano ou pelo menos de uma memória atávica de como sucedem as coisas através de tal prisma. Isso sugere que as fronteiras entre aquela suposta limitação epistemológica científica e a constituição ternária da mentalidade cosmológica ameríndia podem-se dissolver ou tornarem-se translúcidas conforme a dose de intuição do seu proponente teórico, sem o que para ele, Viveiros de Castro, seria inviável sua apreensão, e, logo, menos ainda para nós outros.

 

Artefato Waiwai

 

  Sendo verdadeira, ou ao menos verossimilhante, mais essa premissa, deparamo-nos novamente com o fundo hipotético, porém essencial, que dá sustentação à tese da “domesticação das mercadorias”. Mas agora acrescido e reafirmado pela inclusão dela mesma, de Catherine V. Howard e seu orbe, para quem e segundo sua própria teoria, de forma especular, a “resistência cultural” dos Waiwai não deixaria de assinalar justamente um complexo sociocultural que também abrange a si mesma, e onde seu contato define uma de suas inúmeras deformações ou nuances dentro de um espectro cultural plenamente diversificado mas único da natureza humana.

  Na página vinte e três do seu descontraído Mito e Significado, Lévi-Strauss sentenciou que “não se pode conceber significado sem algo que o ordene”; pouco mais adiante, corroborou: “sem a visão do todo, não se pode explicar coisa alguma” (1978, p. 29). O que a etnologia amazônica deu oportunidade a uma geração de antropólogos talvez tenha sido bem mais valioso que os pretensiosos esquemas ordenadores lógico-dedutivos a que o próprio Lévi-Strauss e a própria disciplina antropológica talvez em vão buscaram superar. Porque, se ao menos na teoria Lévi-Strauss estiver com a razão, mesmo o indutivo método etnográfico, quando aplicado à díspar região amazônica, tendo que abrir mão dos pressupostos classificatórios dos seus já caducos aditamentos preliminares, haveria de reconhecer afinal que prescindiria de uma visão mais ampla e ao mesmo tempo mais específica de uma generalidade em que pudesse ancorar as primeiras bases para descrições mais substanciais. Foi o que ofereceram os abnegados trabalhos de antropólogos, entre outros, do porte de Peter Rivièri, Stephen e Christine Hugh-Jones, Joanna Overing e Catherine V. Howard. Seu ponto de convergência aos poucos ir-se-ia aglutinar em torno de algo tão primordial quanto o supostamente inato pendor religioso: a cosmologia. Mas essa cosmologia, múltipla e dispersa, era também profundamente marcada por um grau de imanência que beirava o animismo tyloriano. Restava uma alternativa epistemológica. E não seria senão a partir daí que o caminho a ser tomado pela antropologia aplicada às tribos amazônicas teria a chance de livrar-se das meras e até simplórias justificativas do relativismo cultural.

 

Notas

[1] HOWARD, Catherine. A domesticação das mercadorias: estratégias Waiwai. In: Pacificando o Branco: cosmologias do contato no Norte-Amazônico. Bruce Albert e Alcida Ramos (Orgs.). São Paulo: UNESP, 2000, pp. 25-60.

[2] Cabe aqui chamar a atenção para uma extensão do propósito das expedições de Johann Spix e Carl von Martius ainda na primeira metade do séc. XIX: embora essencialmente dedicadas a reunir fatos historiográficos e artefatos museológicos, esses objetos talvez não tivessem outra atração mais marcante que a emanação que ainda podiam reter em si da cultura que os havia fabricado. 

[3] Muitos críticos propõem ainda o termo “neo-colonialismo”.

[4] Clifford Geertz, entusiasta do interpretativismo, foi um mundialmente reputado antropólogo, embora muito poucos tenham percebido que fez mais sucesso por seu talento jornalístico-literário.

[5] Cf. as etnografias de Peter Rivièri, Joanna Overing e do casal Hugh-Jones, precursoras dessa nova abordagem.

[6] No campo da filosofia, Heidegger e Marleau-Ponty já haviam apontado essa dicotomia atribuindo-a ao “Cogito ergo sum” de René Descartes e como tendo sido reforçada (talvez involuntariamente) na Crítica de Immanuel Kant e seu conceito de noumeno.

Referências Bibliográficas

DESCOLA, Philippe. Beyond Nature and Culture. London: Routledge, 2005.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

HARRIS, Marvin. El desarrollo de la teoría antropológica. Madrid: Siglo XXI, 1979.

HENARE, HOLBRAAD, WASTELL. Thinking Through Things. Theorising artefacts ethnographically (Introduction), 2007.

HOWARD, Catherine. A domesticação das mercadorias: estratégias Waiwai. In: Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. Bruce Albert e Alcida Ramos (Orgs). São Paulo: UNESP/IRD/IOSP, 2000, pp. 25-60.

HUGH-JONES, C. From the milk river: social and temporal process in Northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. São Paulo: Horizontes Antropológicos, 2012.

KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 2004.

______ . Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978.

OVERING, Joanna. The Piaroa: a people of the Orinoco basin. Oxford: Claredon Press, 1975.

PARSONS, Talcott. A estrutura da ação social. Petrópolis: Vozes, 2010.

RENAUT, Alain. A era do indivíduo: contributo para uma história da subjetividade. Lisboa: Instituto Piaget, 2014.

RIVIÉRE, Peter. Individual and society in Guiana: a comparative studies in social anthropology, Cambridge University Press, 1984.Caps. 3, 4, 7 e 8.

SEEGER, DAMATA & VIVEIROS DE CASTRO. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. in: Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/Editora UFRJ, 1987.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015.

Peça Waiwai no Britsh Musium

download.jpg
images.jpg
  • LinkedIn
  • Instagram
  • Facebook
20211126_190604.png
bottom of page