O Mito do Homem das Cavernas
Por: Ricardo Pontes Nunes
Há alguns anos encontrei num boteco um sujeito muito simples que me disse resoluto, um pouco indignado até, não crer que o homem houvesse ido à Lua. Não tive interesse em objetar, tampouco me interessava ouvi-lo expor seus argumentos, os quais eu já adivinhara e que não eram nenhuma novidade: o protesto quase folclórico contra aqueles que queriam profanar o caráter sagrado dos astros divinos.
Eu entendia que não se precisava entender muito de engenharia espacial de lançamento de satélites para se concluir que a alunissagem da Apolo XI não só fora possível como muito provável, mas poucos dias depois, curiosamente, assisti a um documentário recente em que se impugnava aquela mesma façanha astronáutica. A alegação dessa vez, mais extensa e minuciosa, era histórico-política.
Após reunir uma série de indícios de falhas técnicas e discrepâncias estratégicas, concluía que durante a corrida espacial da guerra fria, a contrainformação americana havia forjado o pouso na Lua para dissuadir seus adversários soviéticos simulando um poderio tecnológico superior. Podemos ver que por razões e caminhos muito díspares, como o da impossibilidade e o da contingência, num ponto essencial da questão meu pobre colega de bar podia se conciliar com detetivescos documentaristas ou exploradores de teorias conspiratórias. Pode parecer um sofisma, mas isso não deixa de implicar que um fato em si, ou sua inexistência, em muitas circunstâncias pode ser menos relevante que os pressupostos que amparam sua possibilidade ou sua efetivação.
De modo similar, mas positivo, essa influência de nossas expectativas presentes também atua nas diferentes formas com que se pode interpretar o que se deu ou deixou de se dar na outra e não menos enigmática extremidade temporal: a do passado remoto. Há muito nosso imaginário é disputado por versões tão distintas da “pré-história” humana, avant la lettre, que a única coisa em comum entre elas talvez não seja senão o seu anseio.
A mais antiga e mais romantizada delas aparece formulada em Hesíodo e em Sêneca: a célebre Idade de Ouro; não como elaborado projeto fictício como na República de Platão ou na Utopia de Thomas Morus, que também a prefiguram, mas como lenda tributária de uma espécie de compartilhada memória coletiva. Por um itinerário assolado por lástimas, também Rousseau chegaria a essa idade em que fôramos dóceis e solidários selvagens, mas apenas como contraponto a um mundo onde a cultura e a civilização nos haviam inoculado o germe da degenerescência.
Seguindo um retrospecto paralelo, cerca de um século antes Thomas Hobbes dera com essa clareira no tempo, mas através das lentes de sua projeção pôde ver somente o horror da barbárie que legitimava para ele o então nascente Estado como único meio capaz de aplacar nossa inata selvageria. Sobre esse “estado de natureza” conjectural desdobraram-se as confabulações de tantos outros, de Turgot a Lewis Morgan, de Montesquieu e John Locke a Auguste Comte. Ou seja, por motivos diversos, essas variegadas versões implicitamente negavam a então convalidada doutrina do paraíso perdido, e o que punham em seu lugar devia a esses mesmos motivos a forma e o conteúdo de suas perspectivas.
Despojada de arroubos estéticos ou intuitivos, a imagem do mundo pré-histórico que predomina hoje apresenta-se agora unânime, necessária e universal. Transcrita em pretensos e objetivos traços científicos, delineia-a a teoria quase onipresente no discurso contemporâneo de que num passado remoto, em suma, fomos paleontropídeos habitantes de cavernas. Alguns aspectos lhe conferem essa onipresença. Um deles, obviamente, está no nosso próprio caráter redutível a unidade genealógica comum: recorre-se à essa suposta situação ancestral não apenas quando ela é o foco central e deliberado em um debate especializado sobre a origem biológica ou biopsicológica de nossa espécie, mas salta peremptória de sua prontidão mesmo numa conversa trivial tão depressa o assunto resvale numa especulação retroativa qualquer.
À guisa de introdução ou explicação de seja qual for o problema ou assunto de qualquer área do conhecimento humano - sono, higiene, economia, religião, culinária ou questões domésticas de relacionamento familiar - apresenta-se o ensejo para que se remeta ao tempo em que, com algumas variáveis, “éramos caçadores-coletores acossados por predadores ferozes”. Outro atributo de sua constância foi a natureza apodítica de sua “dedução”.
Desde que em princípios do séc. XIX, com base no tempo de resfriamento de uma esfera de metal candente em laboratório e sua proporção em relação ao núcleo da Terra, recuou-se a idade geológica da Terra para muitos milhares de séculos além dos seis mil anos que os talmudistas deduziram da cronologia das Sagradas Escrituras, não coube outra explicação mais razoável para o transcurso do homem desde o Pleistoceno senão a de uma hipótese evolucionária que já estava pronta aguardando a oportunidade das conveniências.
Entre outros achados arqueológicos e paleontológicos, como a “descoberta” do paleolítico, técnicas estratigráficas haviam demonstrado que os vestígios de vida marinha no cume dos Alpes eram muito mais antigos que o Dilúvio, e que os fósseis petrificados não eram mais de criaturas que não lograram embarcar na Arca de Noé ou de outros Deucaliões. Era a deixa para a teoria da evolução das espécies orgânicas, cujos dispositivos e abrangência não tinham por que deixar de fora o bicho-homem. E atravessamos com ela a última fronteira para um novo paradigma cosmológico.
Sancionada a hipótese, seguiu-se a aleatória especulação sobre suas premissas históricas. Com duas dimensões de categorias tão distintas nas mãos, a das eras geológicas e a do nosso desenvolvimento biológico, o resultado foi a anacrônica e fantasiosa configuração do homem primitivo desassociada do seu ambiente físico e mental. Prevaleceria, assim, um modelo de estado natural similar ao de Hobbes, com a suposição da vida “curta, sórdida e solitária” do homem cavernoso.
E é difícil dizer se fundado agora na inconsciente idealização do progresso científico e tecnológico em sua promessa de felicidade ou se, justamente, no dissimulado desespero que traia aquela esperança na razão. Havia um esquecido precedente. Na primeira metade do séc. II a. C, em seu De Rerum Natura, a mesma imagem do hominídeo simiesco havia sido propalada pelo poeta romano Lucrécio, a qual ele havia herdado de seus mestres epicuristas da Era Helenística, período cuja característica mais marcante, assim como do séc. XIX da Era Cristã, não por mera coincidência, era o seu estado de completa desintegração espiritual.
Mas, na prática, não importa muito como as coisas realmente aconteceram, nem sequer se aconteceram, mas os sintomas da época posterior que as reivindicam. Freud e seus discípulos fundamentaram a origem de boa parte de seus neuróticos “complexos” psicológicos em tramas mal resolvidas oriundas dessa hipotética fase animalesca; o fato de ela ter ou não existido em nada interferiu na influência e no sucesso de seus preceitos analíticos nem na eficácia clínica dos seus prognósticos.
Assim chegou e permaneceu essa concepção cosmológica de nosso passado. A dimensão do tempo de uma vida inviável num mundo hostil onde os proponentes do progresso evolutivo cultural e biológico assentaram sua retrodição. Parece, portanto, que a humanidade nunca se dará conta de que o tempo presente de sua geração será também apenas um passado remoto, atrasado e presumido para o seu pretenso futuro; porque, notem, por muitos ângulos, hostil e impraticável este mundo aqui continua sendo até hoje, e não parece que a distância que separa nós bichos de sermos anjos, ou uma outra espécie qualquer mais elevada, tenha diminuído desde a última glaciação.
Tenho pra mim que as chances e o medo de sermos vítimas de latrocínio numa esquina qualquer hoje em dia não têm porquê ser menos infundados ou menos aflitivos que a de que fôssemos emboscados por trogloditas armados de tacape na saída de um bosque na savana paleolítica; que o desafio de ter de mudar de cidade com a família em busca de emprego seja menos acabrunhador que ter de se deslocar com o clã depois de uma seca assolar a comunidade; ou que rezar por uma vacina hoje seja mais racional do que acreditar num ritual de cura mágico sendo membro da trupe.
Por outro lado, todavia, não alimento a ilusão de que a diversão num parque de shopping center seja mais alegre que a de brincar com caroços de amêndoa na copa de um arvoredo, por exemplo. Pelas mesmas razões, também jamais cri sequer que algum dia fomos nômades. A propósito, para quem não sabe, nunca se teve registro de povo algum que o haja sido. Nem da antiguidade, nem entre os nativos das américas, África ou Oceania. A não ser nós mesmos, todos, segundo o mito, enquanto homens das cavernas que tanto repetem havermos sido um dia, enquanto que até os lobos e as hienas estabelecem seu covil.
Houve, sim, sempre, migrações mais ou menos constantes, mais ou menos vitais para quem migra, seja como refugiados ou expulsos por intempéries ou catástrofes naturais, jamais porque é de sua índole serem nômades. Se o foram, migraram justamente para deixarem esse estágio provisório. O mais próximo que se tem notícia até hoje são na verdade povos pastores de diversas partes do mundo, como os Namtso ou os Sámi, mas não que sejam eles nômades, mas seu ofício ou modo de produção, os quais lhes exigem a condição de acompanharem o rebanho em diferentes estações do ano, por óbvio porque mudam com elas o regime das águas e das pastagens. Assim como ciganos e tuaregues, que não constituem uma sociedade, mas nichos específicos associados a práticas comportamentais e religiosas ou ao comércio itinerante de caravanas. Ou seja, o nomadismo nunca foi uma característica, mas apenas uma necessidade; esse pequeno equívoco, por incrível que pareça, gera uma série de outros maiores.
As especulações sobre a constituição familiar constituem talvez o que há de mais insano nessa perspectiva pré-histórica. Uma vez que toda instituição requer o amparo do seio social que a abarca, é contraditório falar em sociedade matrilinear, porque se trata apenas do único arranjo possível num mundo em que os homens não assumiam os filhos, seja lá por que motivos, se técnico-econômicos ou porque ignoravam ainda que os machos também deviam sua parte na fecundação.
O núcleo familiar perfaz o elemento primordial para que se possa chamar um determinado grupo de “sociedade”, vale dizer, para que haja a possibilidade mesma da organização social. Muitos outros aspectos de uma vida neandertalesca poderiam ser elencados aqui para submetermos sua arbitrariedade ao senso crítico, seja por meio do raciocínio lógico, seja pela experiência mesma que podemos ter ao visitar uma aldeia nativa ou nos enfurnando na extensa etnografia já produzida desde o séc. XVI - pelo menos a não ideologicamente comprometida - e constatarmos que uma sociedade, por assim dizer, pré-estatal, não significa que esteja dissolvida num fortuito estado de natureza.
Mas como essa comparação foi declarada suspeita, vamos então a um quadro mais específico. Imagine esse suposto homem primitivo tateando pelo mundo sem conhecê-lo ou, pelo menos, sem qualquer domínio sobre ele. Apenas com o manejo de algumas vestimentas, abrigos ou ferramentas rudimentares, sem saber exatamente onde está, nem quando será sua próxima refeição prestes a ser devorado a qualquer momento, vivendo como um quadrúpede sem os recursos instintivos de que este é dotado para sua sobrevivência e procriação. Ora, se pressupõem ter havido uma evolução de milhares de anos, como que se pode imaginar um sujeito que não sabe nada dos recursos do seu ambiente ao redor. No mínimo, o seu desenvolvimento filogenético teria de ser pari passu ao de sua capacidade natural de explorar e de se integrar a seu ambiente. A má interpretação do termo “sobrevivência” contribuiu para a formação desse mito de uma vida em luta permanente contra o sofrimento e a morte. Sobreviver significa também apenas perdurar, estabelecer-se.
Em um estado puramente animalesco poderíamos até ter intuído a centelha, mas jamais concebido os meios para o desenvolvimento da agricultura, da linguagem ou da arte. Há em tudo isso, obviamente, gritantes anacronismos e contrassensos, sem entrarmos na questão ontológica da impossibilidade de um organismo qualquer possuir seus próprios meios de adaptação e evolução, sendo que, em nosso caso, desconheceríamos até mesmo com quantos paus se faz uma simples canoa; ou na de que um caos evolutivo, uma seleção natural cega, por definição, não poderia jamais produzir a ordem necessária para a organização do intelecto humano.
Por volta da mesma época em que surgiu esse mito moderno, a década de 1840, Auguste Comte declarou que a mente dos homens primitivos, ao atribuírem a causa das coisas a entidades etéreas, aspiravam ao absoluto; quase dois séculos depois, no entanto, está patente que as leis sociológicas do positivismo almejam um conhecimento ainda mais absoluto. Enquanto não se chega a esse termo, e talvez nunca se chegará, aos axiomas científicos não importam verdades últimas, mas sua utilidade na administração pragmática ou pelo menos teórica dos fenômenos.
A teoria da gravidade, por exemplo, não explica melhor a queda dos corpos que a dos pitagóricos, apenas a expressa em uma equação; e o heliocentrismo, apenas o movimento errático da paralaxe dos planetas, o que interessa muito menos para a vida cotidiana que o “movimento aparente do sol” da teoria ptolomaica. Esquemas teóricos muito mais frágeis e transitórios acabam por assumir o status de axioma por virem juntos, por assim dizer, num embrulho de deslumbrante revestimento científico.
Ora, as teses de que nós humanos evoluímos desde australopitecos, na verdade apoia-se em princípios comparativos que, em essência, atuam no mesmo sentido que um dogma. O dogma está no fundamento de uma doutrina porque esta precisa afastar as hipóteses ditas falsas ou contrárias para poder se sustentar, sem o que ela tenderá mais cedo ou mais tarde a entrar em contradição e desmoronar, uma vez que os resultados esperados não se consumarão na vida prática.
Assim, um dogma não deixa de ser a versão teológica para um dado mito, um nome mais sofisticado. E, assim como este, parece não padecer de força comprobatória, talvez porque precise de milhares de anos para que a constatação de que não passa disso quebrante a certeza dos crédulos. Assim sucedeu com os mitos escatológicos, assim tem sucedido com o mito do homem das cavernas contemporâneo. Enquanto não decorrer o tempo necessário, vão constituindo nossa visão de mundo, nossa cosmogonia. Vamos substituindo uma palavra por outra, e assim seguimos orgulhosamente satisfeitos de estarmos a caminho de resolver a questão da nossa compreensão de nós mesmos.
Quem quiser acreditar, que acredite.