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A VIDA É BELA

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Itália, 1997

Título original: La Vita è Bella

Direção: Roberto Benigni

Produção: Gianluigi Braschi e Elda Ferri

Roteiro: Roberto Benigni e Vincenzo Cerami

Elenco: Nicoletta Braschi, Giorgio Cantarini, Giustino Durano, Sergio Bini Bustric, Horst Buchholz, Marisa Paredes

Música: Nicola Piovani

Fotografia: Tonino Delli Colli

Duração: 116 min

O Sacrifício Alegre da Farsa

Por Ricardo P Nunes

   Pouco se pode dizer de A Vida é Bela sem que se lhe acrescente drama, ingrediente que já está ali na medida exata para o que se propôs representar. Não que o trágico ou a fatalidade estejam ausentes, mas contidos em um significado livre de obviedades. A graça e a engenhosidade do filme de Roberto Benigni estão aí, em sua medida e sua sutileza, exorbitá-las seria distorcer sua mensagem.
   Todos já conhecemos as circunstâncias históricas do seu pano de fundo, em algum grau já experimentamos a pressão da incerteza quando tanto tarda o objeto da esperança, as canduras da relação entre pais e filhos e o sonho de herói. Acontece que foi entre essas gastas, embora delicadas, filigranas que o roteiro encontrou o seu lugar incomum: em um mundo conflagrado, sua última versão não pode ser outra senão a da fantasia que impõe uma única escapatória: a de negá-lo contra todas os fatos e evidências para resguardar os inocentes.

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A farsa e o jogo contra a brutalidade do real

   Conceber esse argumento talvez não tenha sido tão difícil, mas lograr demonstrá-lo sem lançar mão de diálogos sentimentais ou filosóficos, eis a façanha de A Vida é Bela. Ademais, propositais ou não, há ali inescapáveis projeções, como o fingimento permanente do personagem que Benigni incorpora, Guido, com seus chistes e truques, para poupar o filho das agruras que estão vivendo, doando também a nós sua generosidade ao nos comover não pelo que de mais atroz havia naquele quadro, mas pelo que de mais belo e terno podia ainda sobreviver sob seus escombros. Os sentimentos a que se devota lhe são caros demais para que a realidade possa impedi-lo de vivenciá-los, para que tenha tempo para que lhe lastime o sacrifício.

   Escrito pelo próprio Benigni junto com Vincenzo Cerami, o roteiro se inspirou no livro Ho Sconfito Hitler (Eu Derrotei Hitler), de Rubino Romeo Salmonì que descreveu com ironia e humor perverso sua sobrevivência do Holocausto; o enlace pessoal que se evidencia a todo momento deve-se às recordações que Benigni trazia do pai, quem lhe contava com humor as peripécias que vivera em um campo de concentração na Segunda Guerra. Sobre a trama em si mesma, seria irrelevante comentar, uma vez que o que realmente lhe interessa revelar é a conversão das perspectivas trágicas em notas de esperança que seu próprio conteúdo vai desenrolando, assim como o acaso e a persistência com que esses sentimentos se sucedem. Restaria dizer algo sobre sua exceção no mundo do cinema.

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Benigni: "rir e chorar vêm do mesmo ponto da alma"

   Muitas coisas podem carecer de descrição, de análise, basta olhá-las, mesmo para os que não podem se gabar de perspicácia. O cinema, pela própria natureza da sua matéria prima, imagens móveis, pareceu vir ao encontro do velho adágio que dizia que “os fatos falam por si”, estava fadado a ser a arte descritiva por excelência.
    Acontece que, em nome de uma busca cada vez mais profunda do que talvez estivesse cristalino desde a superfície, nos habituamos a desconfiar dessa simplicidade. No princípio, a arte buscava compartilhar, despertar, um sentimento, uma síntese, não elaborados esquemas analíticos que acabaram por torná-la refém de teorias conspiratórias e abstratos malabarismos conceituais e metalinguísticos.
   A ficção não era senão um artifício para a apreensão de uma realidade que se apresenta em fragmentos, um meio de alinhavá-la na forma de mito cuja força de persuasão ou acalento estava justamente na verossimilhança. O entretenimento não era um propósito, mas apenas um efeito. Ao que parece, invertemos essa sequência, quem sabe porque a vida mesma já se havia tornado um fardo pesado demais para que o real e o imediato continuassem sendo uma prioridade. Assim, o simples entretenimento converteu-se em meta, o que fez com que a ficção, ao invés de esclarecer, confundisse a realidade. A era do cinema rematou esse discernimento.

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“Josef e eu passamos perto da Rampa, onde chegava um transporte de crianças. [...] vimos vestidinhos e sapatinhos, mas não havia crianças. Perguntei a Josef onde elas estavam. Ele me disse olhando a fumaça dos crematórios: «Ali estão! elas estão saindo..." .

Romeo Salmonì, in: Ho Sconfito Hitler

Salmoní: o remédio do humor negro

   Certamente, a origem dessa ilusão não se pode atribuir a um fato, é obra de séculos e gerações. Aa maneira como passamos a reivindicá-la, porém, está bem ilustrada naquele famoso caso no qual, finda a Segunda Guerra, em uma película cinematográfica de ação aparece um punhado de heroicos soldados americanos encurralados numa clareira pelos inimigos ferozes; a cena despertou os que conheciam a história e geraria um certo desconforto diplomático quando um parlamentar inglês alegou publicamente a usurpação; segundo ele, aquela situação, ocorrida de fato durante a guerra, havia se dado na verdade com uma tropa britânica.
   A querela foi dirimida pela simples sentença que desqualificaria para sempre qualquer pretensão futura nesse sentido: ninguém ali estava discutindo a realidade, ou seja, “um filme não passa de ficção, meu caro”. A realidade já estava dada, e não havia direitos autorais sobre os fatos. Daí para a ficção da ficção, era só um passo a mais.
   Passo encantado e divertido, mas no mais das vezes em falso. Passou-se a planos alheios à lei da gravidade, a orbes desfigurados em que falsos pressupostos e anacronismos permanecem coerentes na mente do público mesmo depois de acaba a sessão, e, o mais danoso - porque maléfico não só para a arte enquanto sublimação, mas enquanto modelo capaz de fornecer experiências válidas -, passou a intrigas onde atuam personagens construídos com retalhos inconciliáveis de múltiplas personalidades, os quais vão se enredando em tramas alucinatórias (creio haver certa ironia no subtítulo do recente filme Doutor Estranho: no multiverso da loucura) ovacionadas por plateias cada vez mais desapercebidas de que, assim como a vida, o mundo não pode ser aleatório nem descontínuo.

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O filho que habita em nós

   Esse desígnio e essa continuidade aparecem no filme de Benigni sob uma luz meio amarelada. Mas uma luz alegre e como que recuperada, não meramente reflexiva. Talvez, portanto, não esteja bem falarmos de uma arte genérica, tampouco de um cinema universal, ecumênico. A Vida é Bela representa uma espécie, uma avis rara desse gênero.
    Terminado o filme, entendemos que o personagem principal era o menino, não o pai, o qual refletia o próprio Benigni, quando escreveu, dirigiu e atuou no filme, tal como o faz seu alter ego demente e crédulo ao guiar a versão louca do mundo na qual o garoto precisa acreditar para suportar a realidade. Mas não quis aí despertar o pesar, mas a ternura.
   Benigni penetra no filme para seguir o itinerário que havia traçado antes, na fantasia do roteiro, porque sabe onde vai dar, não porque Guido seja um bobo crédulo, mas sim porque, se o universo não é uma casualidade, seu fim diante da mira de um fuzil há de ser apenas uma farsa. E talvez haja aí um escárnio contra a realidade e sua efemeridade, contra a sua brutalidade, mas sem revolta ou amargura. Talvez melhor seria dizer desdém. Ao final ficamos com a sensação de que também fomos retratados ali, mas não mais como o pai pressuroso com quem naturalmente nos havíamos identificado a princípio, mas como o filho incauto diante do mun

 

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