CANÇÕES PRAIEIRAS
DORIVAL CAYMMI
Vocal & Violão: Dorival Caymmi
Gravadora: Odeon - 33 1/3 rpm; mono, 10 pol. 10 pol.
Lado A
1- Quem vem pra beira do mar (Dorival Caymmi)
2 - O bem do mar (Dorival Caymmi)
3 - O mar (Dorival Caymmi)
4 - Pescaria (Canoeiro) (Dorival Caymmi)
Lado B
5 - É doce morrer no mar (Dorival Caymmi/Jorge Amado)
6 - A jangada voltou só (Dorival Caymmi)
7 - A lenda do Abaeté (Dorival Caymmi)
8 - Saudades de Itapoã (Dorival Caymmi).
A Intuição da Essência
Por Ricardo Pontes Nunes
O traço essencial de uma cultura talvez não seja outro senão o compartilhamento de uma memória comum. E, curiosamente, por mais que livros, monumentos e dinastias procurem instituí-la, nada recupera melhor esse passado coletivo do que os sentimentos evocados por suas preces e seus cantos. Ainda que menos tangíveis, é por meio desses elementos que tal memória se torna mais sondável, profunda e duradoura. Em nossa música popular, poucos exemplos ilustram tão bem isso que o LP Canções Praieiras, de 1954.
Nele, Dorival Caymmi como que consubstancia a memória de uma cultura. Dizer isso é o bastante para o referir com conceitos difíceis, porque qualquer abordagem analítica contamina de artifícios o que essa obra tem de mais puro e genuíno. Apontar sua espantosa circularidade rítmica, suas modulações, sua fusão imagética, suas “aliterações e assonâncias sobre consoantes oclusivas” dar a entender que são resultados buscados por Caymmi e não apenas qualificativos para a beleza sui generis de sua música.
Voz e violão que não careciam dos subterfúgios da metáfora
A linguagem de sua memória é musical, é como se Caymmi intuísse suas cantigas mais que as elaborasse, como se não houvesse esforço técnico para que nos façam sentir o balanço do barco ou do vento nos coqueirais e o ritmo braçal dos jangadeiros; não carece de metáforas para expressar o fascínio e o terror que o mar prenuncia; e a fatalidade má ou sã que desenham as ondas em seu vai e vem na areia da praia remota.
Em abril de 1938, com pouco mais de vinte anos, Dorival migrou para o Rio de Janeiro, onde pretendia seguir carreira como jornalista. Canções Praieiras, seu primeiro disco, só sairia dezesseis anos depois, embora já houvesse emplacado sucessos no rádio e no cinema na voz de grandes cantores como O que é que a Baiana Tem? e Marina. Desde o início o baiano deixava pistas de que seria menos um cantor profissional do que uma espécie de menestrel. Seu tema dileto é quase onipresente, um elogio saudoso da terra natal em sua conjunção com o mar, o que talvez trouxesse algo de mea culpa ou perdão de si mesmo por se sentir feliz tendo deixado seu idealizado lugarejo para ir viver na cidade grande num tempo em que tal viagem era feita em navios a vapor (um dos quais ele imortalizaria na letra de Peguei um Ita no Norte, canção de 1945).
Embora longevo, Caymmi compôs relativamente pouco. Em seu estilo singular, porém, não apenas cantava, gorjeava quando a inspiração lhe vinha à flor da pele morena sob os cabelos precocemente encanecidos que também foram um de seus símbolos folclóricos. Não à toa, várias de suas músicas confundem-se com canções de domínio público; ou seja, são como se não lhe pertencessem propriamente, como se ele fosse apenas o porta voz, e violão, de uma cultura que ele pôde captar a essência. A respeito do seu repertório, Caetano Veloso certa vez declarou, com modesta precisão, que Caymmi compôs “menos de uma centena de canções; ao contrário de mim, mas as dele são todas perfeitas”.