A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA
Modris Eksteins
Tradução: Igor Barbosa
Editora: Vide Editorial
462 pág.
A Arte entre a imitação da Vida e a sagração da Morte
Por Ricardo P Nunes
Para uma melhor compreensão dos fatos históricos, obviamente devemos considerar sobretudo as implicações da sucessão cronológica de fatores, eventos e agentes sociais, políticos e econômicos que os antecederam. Assim é, com algumas variáveis mais sofisticadas ou experimentais, a dinâmica natural de sua abordagem. O que sempre parece ter faltado, foi o senso de perspectiva. Em A Sagração da Primavera - a primeira guerra mundial e o nascimento da modernidade, considerado desde o seu lançamento nos EUA, em 1989, uma das obras mais originais sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o letão-canadense Modris Eksteins adiciona um aspecto pouco mencionado à abordagem dos fatos; e um aspecto apenas aparentemente secundário: a dimensão estética por trás dos eventos, a atmosfera artística subjacente aos atos dos indivíduos.
Embora o livro de Eksteins deixe a entender que tal percepção só se tornaria possível a partir de fins do séc. XIX, ou seja, desde o advento da arte moderna, esse caráter já era sentido na Antiguidade. Hesíodo já experimentara algo similar ao perceber uma espécie de sacralidade no trabalho em Os Trabalhos e os Dias, e Homero, reza a lenda, já idealizara as façanhas guerreiras da humanidade a ponto de imaginar que seu elevado fim era constar nas futuras páginas dos épicos.
O protótipo fundador da percepção que inspira Eksteins, contudo, consolidou-se de vez em meados do Dezenove, não propriamente no conteúdo analítico, mas num aforismo de Jacob Burckhardt. Fascinado pelo Renascimento, o grande historiador suíço concebeu o desenvolvimento das cidades-Estado italianas renascentistas como análogo ao de uma obra de arte. Inspirado nele, de quem assistia às aulas devotamente na juventude, Nietzsche declararia mais tarde em A Origem da Tragédia não haver outra justificativa perene para a existência e o mundo senão enquanto fenômenos estéticos.
Como o mestre, porém, Nietzsche não iria além do aforismo nessa questão. Mas esta provavelmente foi a deixa na qual Eksteins enxergou uma maneira de aplicar o conceito na relação entre a tendência que começava a dominar as manifestações da arte europeia no pré-guerra e as belicosas tensões socioculturais e político-econômicas que ensejariam o conflito em escala global.
Eksteins: o esteticismo como esforço e não como leveza da vida
Vale recordar que naqueles mesmos princípios de séc. XX, numa célebre teoria sociológica, Max Weber buscou plasmar a origem do capitalismo segundo o que chamou de ética protestante, sua weltanschauung, uma espécie de visão espiritual do mundo. No livro de Eksteins, algo similar se projeta sobre a intuição das vanguardas artísticas: a inclinação a se perceber e representar o mundo sem uma objetividade determinante, mas como uma criação humana ou da própria arte, tal como na pintura impressionista sugeria, tal como, na filosofia, Schopenhauer entrevira um século antes. O pendor para a dissolução e ruptura das formas e para a totalidade, conclui o autor, teria passado a constituir o espírito da época e transbordaria na arte como modelo para os atores humanos no desempenho dos seus papéis e expressar-se-ia de maneira mais eloquente na inevitabilidade da guerra total.
Eksteins abre o livro, dividido em três atos, estabelecendo um marco inaugural: a polêmica apresentação em Paris, em maio de 1913, do balé russo A Sagração da Primavera. Em sua encenação, a inusitada atuação dos elementos que o compõem não seriam senão um prelúdio do rebento que estava em avançado estado de gestação. O balé, produzido por um dos filhos tresmalhados da conservadora aristocracia rural russa, Sergei Diaghilev, trazia como subtítulo Quadros da Rússia Pagã em Duas Partes.
Como sugerem título e subtítulo, a música propositalmente dissonante de Stravinsky, a coreografia selvagem de Nijinsky e o figurino primitivista de Roerich provocam a plateia remetendo-a à crise civilizatória e sua superação destrutiva simbolizada num ritual de sacrifício pré-cristão à Primavera, que, grata pela oferenda de uma virgem, proporciona o renascimento das coisas em sua respectiva estação do ano. Neste ponto entra o teor que permeará o livro de Eksteins até o fim: o equivalente crucial dessa alegoria está no sentimento reprimido de revolta primitiva que ele atribui à sociedade alemã naquele começo de século; sentimento acumulado desde a oposição que os germânicos vinham fazendo de sua Kultur (um sentido próprio de cultura) como algo muito distinto do senso de civilização que domina o restante das potências europeias de então, França, Rússia e, sobretudo, Inglaterra.
Essa razão psicológica, quase metafísica, sua explosão, é o que dará o tom de euforia entusiástica que inundará mentes e corações germânicos ávidos pela luta que eclodirá na Primeira Guerra. Assim, a rápida e avassaladora ascensão econômica e industrial alemã desde a unificação sob Bismarck em 1871, talvez não teria fornecido senão a ocasião propícia para o enfrentamento que conduziria aquele povo às benesses primaveris de uma nova era, livre das amarras opressivas de uma sociocultura construída sobre o fingimento e a hipocrisia burgueses e difundida pelo imperialismo britânico.
Três camadas de um mundo fluido e transitório: pensamento, representação e realidade
Segundo Eksteins, a guerra encarniçada que se travou nas trincheiras e o sentimento de isolamento dos combatentes ao voltarem para casa também foram um reflexo daqueles mesmos sentimentos. A descrição dos campos de batalha, apesar da podridão e do horror, está eivada de uma imagética que busca consolo no artístico. A “geração perdida”, não seria uma epígrafe justa, mas a síntese dos sintomas do vazio do pós-guerra de ambos os lados dos contendores, do silêncio e da ausência de glória, aventura e sentimento estético do fervor instintivo que dominaram a “terra de ninguém” nos campos de batalha de Verdun, Ypres e Somme.
Talvez fosse necessário admitir algo mais íntimo, além do que a interpretação pragmática dos eventos podia acessar; e foram as ousadas conclusões sobre essa recôndita esfera da personalidade que dariam a Freud a proeminência dos seus diagnósticos. No âmbito das testemunhas, só em 1929, passada a náusea, é que, em busca de respostas mais palpáveis, cresceu o interesse pelos significados visíveis da Guerra; e o romance Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, um ex combatente alemão, seria até então um dos livros mais vendidos e aclamados de todos os tempos.
O retrato da “verdade sobre a guerra”, como dizia a propaganda de sua divulgação, despertou a simpatia até dos que haviam lutado contra a Alemanha, mas insuflou a ira de grande parte dos conterrâneos de Remarque, que viu no sentimentalismo do soldado universal pintado pelo autor uma traição ao verdadeiro espírito germânico na Guerra; e a piedade que despertara em seus inimigos, apenas mais um agravante na humilhação sofrida na derrota. O que pouco se sabia, e se sabe até hoje, revela Eksteins, é que Remarque era uma falso herói e, por isso mesmo, nem um pouco habilitado a ser o porta-voz da geração que pereceu com orgulho na Guerra; que ele atuara apenas na retaguarda do front e somente por dezoito meses, dos quais metade em um hospital de campanha recuperando-se de um ferimento auto infligido. Nesse momento, Eksteins recorre a William Faulkner, que declarou em 1931:
“A América foi conquistada não pelos soldados alemães que morreram nas trincheiras francesas e flamengas, mas pelos soldados alemães que morreram nos livros alemães”.
A arte desempenhava outra vez seu papel de representação do mundo. Assim como faria depois na esfera individual do artista fracassado buscando redenção numa Primavera a quem já se havia feito o sacrifício na Primeira Guerra: Adolf Hitler. Os mesmos cenários e circunstâncias, mas outras experiências íntimas sob a capa de motivos estéticos coletivos teriam formado a personalidade e os anseios do estafeta infatigável sob o fogo cruzado das trincheiras na Primeira Guerra e que, duas décadas depois, se tornaria o chanceler da realização prática do que de mais alucinatório possuía o "espírito do mundo" de Hegel e do que de mais cruel e de desdém pela vida continha o herói-tirano nietzschiano.
Ao enveredar por uma perspectiva assaz complexa, Eksteins sabe-a não muito incomum de se cristalizar em aforismos, mas um tanto afeita a tropeços ao se ousar amoedá-la em exemplos específicos. A vasta “literatura de guerra” até hoje produzida sobre o assunto foi um dos tropeços que ele soube se desviar. Ao fazer um revezamento do tema principal (a demasiado subjetiva análise, digamos, psicocultural da época) com as singulares crônicas do dia-a-dia em campanha, quando o horror se tornara habitual e o senso de humor volta a florescer, Eksteins evitou que o caldo se derramasse.
Numa leitura mais atenta à sua abordagem abstrata, porém, o caso de Remarque e a citação de Faulkner, por exemplo, traem sua concepção teórica inicial que perpassa todo o livro, pois se referem a uma dimensão da arte mais trivial, maquiadora, falsificadora, e não reveladora da realidade, sejam quais forem as pulsões que a alimentem, ontem ou hoje. Ademais, símbolos e parábolas, justamente por serem representações sintéticas, estáticas, não revelam totalmente seu conteúdo para quem os vê apenas de fora: embora o balé de Diaghilev (que manteve uma relação homoafetiva com Nijinsky) apresentasse o mesmo signo de opressão dos instintos que as aspirações germânicas, evocava algo muito diverso, muito mais pessoal e carnal que a vocação nacional romântica alemã.
Do mesmo modo, a visão da arte enquanto transfiguração e transitoriedade talvez não abarque mais que a visão de mundo dos próprios estetas que a produzem e usufruem, muito distinta da cosmovisão dos milhares de cidadãos comuns que clamaram por pegaram em armas na ocasião. Outra armadilha parece lhe passar despercebida, uma ubíqua pegadinha das disciplinas de história e ciências políticas: as eternas tensões entre vitalismo e racionalismo.
Esses pendores políticos, os quais ele atribui às correntes opostas que foram às vias de fato na Guerra, não constituem entidades em si; vale dizer, adotar uma visão vitalista ou racionalista, quaisquer que sejam os significados que se lhes deem, sobretudo quando os ânimos se acirram, depende do momento ou do lado de que se está na disputa. A Alemanha buscava um lugar ao sol, a Grã-Bretanha manter o seu. Como diria José Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas, na primavera daquele mesmo ano de 1929: “ser de direita ou ser de esquerda é apenas umas das maneiras que um homem pode eleger para ser um idiota”.
A densa documentação jornalística e epistolográfica da época, na qual Modris Eksteins vai embasando seus argumentos e organizando a cronologia, constitui uma virtude a parte do seu livro, que, diga-se de passagem, também possui um quê de romance histórico, detetivesco. Qualquer que seja o ângulo que se escolha olhar os eventos que Eksteins vai delineando, mesmo o estético ou o filosófico, A Sagração da Primavera sempre traz algo para a superfície das profundezas das causas nebulosas que determinaram a Primeira Grande Guerra, assim como o advento da modernidade. Seja pela magnitude dos eventos, seja porque ainda flutuamos de alguma forma longínqua sobre os rescaldos de seus desdobramentos, o livro de Eksteins talvez seja uma dessas tábuas de salvação no desejo de compreendermos um presente também fluido e transitório.