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Versão, Oposição e Invenção na Cultura
                                                        Por: Ricardo Pontes Nunes

   Menos que promover um embate teórico sobre os autores que serão mencionados neste texto, nosso propósito aqui é meramente tentar traçar uma linha onde suas teorias poderiam se cruzar diante de uma referência pontual: a mitopráxis [1] de Marshall Sahlins. Assim, segue-se uma explanação de sua teoria aplicada ao famoso caso do primeiro contato dos polinésios do Havaí com uma frota inglesa, acrescida de sua relação  com duas abordagens distintas da cultura de dois contemporâneos: Johannes Fabian e Roy Wagner.

O mito e a práxis em Sahlins

   É consenso entre os historiadores da antropologia que os estudos etnográficos sobre tribos do pacífico e também a maturidade, foram o laboratório onde Marshall Sahlins experimentou a mudança radical em seus próprios conceitos. De um neo-evolucionismo marxista, o destacado antropólogo americano mudar-se-ia da Columbia de seus mestres Steward e White para a Chicago University, centro difusor do relativismo cultural e onde ele assumiria um culturalismo estrutural às raias do determinismo. Ao cabo de duas décadas envolvido em acirrados debates sobre polêmicas questões teóricas da antropologia, Marshall Sahlins se dispôs a aplicar suas conclusões a episódios reais que servissem para ilustrar suas hipóteses. A execução desse método consta de dois dos cinco capítulos o seu livro lhas de História, onde Sahlins propõe-se reinterpretar o curioso, obscuro e trágico episódio que deu morte ao comandante de fragata inglês James Cook, sucedido na Polinésia em fins do séc. XVIII.  

   O caso era emblemático e propício. Eis um breve resumo: a narrativa convencional dava conta de que ao atracar nos arquipélagos do Havaí em dezembro de 1778, depois de uma série de acasos[2] que coincidiam com as descrições plasmadas nos mitos locais, Cook foi reverenciado até à adoração pelos nativos como sendo um dos seus deuses (akua) que havia finalmente regressado para cumprir encarnado os rituais que todos os anos eram encenados durante as festividades do Makahiki. Ao desembarcar, Cook, conduzido por um sacerdote havaiano, aceitou a carapuça. Passado o período em que se cumpriram os cultos, o suficiente para se abastecer os porões das naus, celebraram o derradeiro rito: a morte simbólica do deus visitante e a cerimônia de despedida prescritas na ritualística, com sua promessa de retorno cíclico para o ano seguinte assim que as plêiades aparecessem no céu para anunciar novamente a estação votiva ao deus Lono. Doze dias depois de desatracar, porém, um incidente de bordo em alto mar fez com que os navios ingleses retornassem à ilha para reparos. Esse imprevisto inverteu a visão dos nativos sobre Cook, que talvez nunca tivesse sido o akua Lono, provavelmente um impostor. Seguiu-se uma série de pequenos furtos e depredações menores. Até que o roubo de um escaler precipitou a fatalidade. Armado, escoltado, e com os canhões apontados para o populacho, Cook tentou fazer o rei havaiano como refém para reaver sua propriedade. Houve um princípio de revolta e a situação ficou fora de controle. No tumulto, uma adaga havaiana trespassou o capitão inglês. O estertor de Cook apaziguou subitamente os ânimos. Apesar das violentas retaliações dos marinheiros, com quem as mulheres havaianas já haviam quebrado os tabus da comensalidade e do sexo, o corpo do seu comandante foi celebrado pelos nativos como se houvesse novamente readquirido sua perdida sacralidade. Um mês mais tarde, os ingleses deixaram a ilha em direção à Europa levando embalsamados os ossos de James Cook.

Jonh Webber - A Morte do Cap James Cook (c. 1782)

A morte do Cap James Cook -  John Webber, c. 1782

  Marshall Sahlins, após investigar detidamente outros dados e relatos da época do acontecido, deu sua versão cultural do fato. Nela assomaram termos como estrutura da conjuntura ou razão empírica, e o que ele denominou de mitopráxis, onde o mito assumia o porte de um complexo cultural. Malinowski ponderara que os mitos eram uma espécie de justificativa para o presente, uma maneira de legitimá-lo; para Lévi-Strauss, uma forma de filosofar, um veículo para o discurso cosmológico. Sahlins iria além. Como uma essência condensada do modelo de e para a vida que Geertz atribuía à religião, segundo Sahlins o mito, para os polinésios, era um modelo de ação e um roteiro para mudanças práticas diante de situações novas que podiam reordenar a estrutura cultural. “Do ponto de vista nativo, todo evento é o exemplo concreto de uma estrutura ideológica” (SAHLINS, 1984). Assim, Sahlins concebeu o fatídico evento como o desenrolar de uma série de prescrições mito-poéticas cuja colocação em prática deu vazão ao rearranjo cultural que nos anos seguintes tomariam forma na sociedade havaiana.

   A tese de Sahlins, naturalmente, não passaria incólume a críticas e contestações. A mais longa e cáustica delas chegou a chamar a atenção da imprensa não especializada. A polêmica com o antropólogo da Princeton University, Gananath Obeyesekere, para quem todo aquele episódio não passava de mais um caso de conquista, imperialismo e civilização, e a quem Sahlins ofenderia chamando-o de “utilitarista vulgar”, permitiria um prolongamento mais detalhado da exegese da mito-práxis. Talvez Obeyesekere refutasse Sahlins com certa parcialidade devida à sua origem insular no Sri-Lanka, mas desqualificava sua tese bem menos do que a contra-argumentava analiticamente ao opor contra si mesma a teoria de Sahlins quando alegou justamente os mitos que assim também, segundo ele, os marinheiros ingleses por sua vez traziam em seu imaginário iluminista representando os polinésios como primitivos que viam os europeus como deuses. Onde Sahlins via o envolvimento de uma extensa rede de símbolos culturais definidores supremos da ação, seu oponente enxergava apenas uma reação óbvia e racional contra os violentos desmandos do antigo colonialismo inglês.

 

Sahlins e Obeyesekere sob a luz do Tempo em Fabian

   Cerca de dois anos antes da publicação de Ilhas de História, o holandês Johannes Fabian talvez já houvesse fornecido, senão um método, uma pista para uma maior eficácia na interpretação etnográfica, ou seja, para a essência da questão entre Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere. Em O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto, Fabian tece uma espécie de trajeto evolutivo no sentido com que a noção de tempo foi sendo apreendido ao longo da história da cultura. O Tempo, ali, quase se confunde com a percepção de espaço ou de história. Dimensões essas como que redutíveis a um princípio de temporalidade. Do tempo medievo sagrado à sua secularização, e mais tarde ao uso do tempo como algo naturalizado, perfaz-se uma cronologia que conduz o antropólogo neerlandês a seu conceito de distanciamento ou de alocronia, e o faz invocar toda uma terminologia para demonstrar o que deve conter uma interpretação antropológica: a coetaneidade nas suas relações.

   Ora, parece-nos ter sido essa alocronia, essa falta de coetaneidade nas relações, pelo menos na versão de Sahlins, entre o capitão Cook e os polinésios do Havaí do séc. XVIII a chave para elucidar não só o que precipitou os fatos em que os próprios agentes não possuíam consciência clara de sua execução, como também para desmistificar a interpretação antropológica sobre esse e tantos outros casos. Assim, se pudermos aplicar radicalmente a teoria de Fabian, Ingleses e havaianos viviam numa mesma época mas dentro de noções de tempo distintas. Disparidade de tempo essa também equivalente àquela presente entre o âmbito da análise etnográfica e os fatos e dados que ela compila; entre o mundo do antropólogo e o dos eventos histórico etnográficos sobre os quais ele se debruça. E não seria exagerado ponderar que, nos termos de Fabian, Sahlins e Obeyesekere em alguma medida também se situariam em planos antagônicos de tempo ideológico. 

 

A invenção de Cook, o deus agonizante

   Deus agonizante é o epíteto que Sahlins impinge a seu herói no quarto capítulo de suas Ilhas de História. Isso não nos autoriza a dizer que Cook já era quase um personagem da antropologia sahlinsiana. Jamais chegaria a tanto, mas é inevitável que seus ensaios-narrativas nos sugiram as admoestações que Roy Wagner, havia cerca de dez anos, enunciara em seu A Invenção da Cultura. 

  Provavelmente não foi em Immanuel Kant que Wagner se inspirou para compor sua tese, mas as teorias cognitivas do filósofo alemão[4] certamente servem para demonstrá-la. O que Wagner postula, em essência, é que estando irremediavelmente apartados das coisas e fatos que nos circundam e com os quais interagimos, nossa interpretação dos eventos seria apenas uma em inúmeras outras possíveis ou até, por que não, contraditórias. Inserido esse princípio no contexto antropológico, essa constatação torna-se ainda mais incômoda. O tom de Roy Wagner não é, notoriamente, o de um pessimista que quer desbaratar nossas pretensões epistemológicas. Aliás, como David Hume dois séculos antes dele, não faz outra coisa no fundo senão reforçá-las. Mas seu alerta, embora sirva a todos, talvez não encontre outros modelos a que se dirigir melhor, porque peremptórios, do que às especulações antropológicas deterministas que então inundavam os anais desta disciplina, o que talvez não seja o caso das análises teóricas que Marshall Sahlins ousou empreender sobre os desdobramentos práticos dos mitos polinésios. Tudo seria uma questão de grau, de nível em que se pode aventurar a proposição de um conceito, de um princípio ou de uma teoria.

  Consta que Sahlins abandonou o determinismo implicado no materialismo marxista, ou em sua versão suavizada de ecologismo cultural, de sua primeira fase como antropólogo para juntar seu renome aos particularistas históricos descendentes de Franz Boas. Mas o que sucedeu foi que carregou consigo o germe já meio moribundo do seu determinismo, redivivo agora numa versão mais idealista de cultura desde que o desencantara a constatação de que os modos de produção, a infraestrutura social é que são definidos pela cadeia dos símbolos culturais. 

Não queremos aqui que a teoria da mitopráxis sirva de bode expiatório a toda a possibilidade de crítica pós-moderna. A propósito, Sahlins foi um dos poucos que levantou as mangas e fez questão de demonstrar suas assertivas em exemplos claros e objetivos. Tanto assim que as próprias doutrinas de Johannes Fabian e de Roy Wagner seriam autocontraditórias ou paradoxais se submetidas ao escrutínio de seus próprios questionamentos, já que o conhecimento da realidade ou o tempo em que as conceberam não podiam ser estáticos, mas tão movediços como as areias da praia ignota que viu agonizar James Cook.  

 

Notas

[1] Até então, na antropologia, uma das funções dos mitos, como dissera Malinowski era “justificar o presente, legitimar a prática atual.” A isso Sahlins acrescentou que as pessoas criam novos eventos em tramas já estabelecidas na mitologia. Os mitos sobre a origem reapareciam ligeiramente transformados como “épicos históricos e, depois, como notícias do dia”. Os mitos forneceriam um conhecimento com amplas aplicações práticas, pois são um tipo de arquétipo para situações análogas e, por isso, um guia para ações futuras. Essa recriação dos mitos em situações contemporâneas é o que Sahlins denominou de “mitopráxis”. Sua conclusão de que “do ponto de vista do nativo, todo evento era um exemplo concreto de uma estrutura ideológica”, se propunha anular a velha oposição entre uma “estrutura” cognitiva e a percepção propriamente dita dos fatos no momento em que os presenciamos.

[2] As insígnias das velas inglesas assemelhavam-se aos grafismos que representavam a imagem do deus Lono para os nativos; a data em que Cook apareceu coincidia com o começo da estação do ano vinculada à regência do deus Lono; e o itinerário percorrido pela navegação de cabotagem que os navios cumpriram ao redor das ilhas antes de fundear perfizera um périplo similar ao que a mitologia havaiana pressagiava como o caminho ritualístico do retorno de Lono (KUPER, Adam. 1999, pp. 207 – 258).

[3] Kant, em sua Crítica da Razão Pura afirma que podemos conhecer apenas os fenômenos, ou seja, aquilo tal qual se nos apresenta através dos sentidos. Se Kant estiver certo, como não podemos conhecer nada das coisas em si, do noumenon, o que nos resta é a construção de nossos próprios significados.

Referências Bibliográficas

FABIAN, Johannes. O Tempo e o Outro. Petrópolis: Vozes, 2013.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Os pensadores. São Paulo: Abril: 1984

KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 2004.

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

________. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2017.

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