HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS - Vol. I
Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo
ERIC VOEGELIN
Editora: É Realizações
Tradução: Mendo Castro Henriques
Em Busca da Origem Perdida
Por Ricardo P Nunes
Pra quem busca pensar fora da caixa, Eric Voegelin (1901-1985) é um prato cheio. Na contramão do mainstream marxista que aos poucos tomou posse do academicismo pós II Guerra, o filósofo austríaco nascido na Alemanha precisou criar sua própria terminologia e sua própria divisão da história para adequá-las a seu pensamento.
Difícil de ser enquadrado em alguma escola de pensamento ou mesmo em alguma disciplina, Voegelin propôs não um materialismo moralmente perverso nas origens e desenvolvimento da civilização, mas, em suma, uma espécie de descompasso entre razão e sentimento no processo civilizatório, o que afastou o homem de sua ordem cosmológica e da simbologia dos mitos a ponto não só de perdermos de vista o sentido de nossa própria história, mas de o substituirmos por narrativas deturpadas e anacrônicas que, segundo ele, gestaram os grandes totalitarismos do séc. XX, o social-nacionalismo alemão e o stalinismo comunista.
Como Weber, a erudição com que Voegelin expõe sua concepção histórica constitui uma fonte primária e profunda de conhecimento, o que, porém, a deixa à beira de uma sorte particular de gnosticismo. (curiosamente, ele mesmo imputava como "gnoses" as teorias que combatia). Isso se refletiu também em sua cronologia, quase atemporal. Em Nietzsche e em Santo Agostinho, por exemplo, por mais distantes que tenham sido suas perspectivas, o período em que se deu a filosofia de Platão foi um emblema da decadência da Grécia Antiga; para Voegelin, por razões distintas do senso comum, o pensamento de Platão foi o canto do cisne.
.".. A principal função da ordem cosmológica é diminuir a ansiedade existencial do homem ao dar à sua alma, pela evocação mágica da comunidade, a garantia de ter um lugar significativo em um cosmos bem-ordenado. Quando o encantamento mágico perde a sua força, as inquietações primordiais são novamente liberadas; o mundo circundante torna-se uma vastidão desordenada, cheia de perigos desconhecidos, pressionando a alma humana; e o espírito que é exposto a essa experiência de desordem pode romper-se com a tensão."
Eric Voegelin, em 1950
Os oito volumes de História das Ideias Políticas, na verdade, foram manuscritos que Voegelin produziu entre 1939 e 1954, finalmente reunidos para publicação completa em 1986, e podem ter servido como ensaios ou prolegômenos de sua obra maior, Ordem e História, mas talvez justamente por isso é que encontramos ali seu pensamento em uma versão mais amena e acessível, sem os complexos transes de sua teoria mais acabada. Embora não tenha dito isso expressamente, ali já está delineada sua ideia de que a conduta humana na consecução do equilíbrio entre o transcendental e o imanente desempenha um papel ontológico, ou que a importância de uma anamnese é mais decisiva que uma ciência puramente sensorial, que para ele nunca passará de uma utopia.
Voegelin: o caos é mais absurdo que uma ordenação
Um atestado a mais de sua originalidade foi que, malgrado em seus tempos de aprendizagem ainda em Viena Voegelin tenha sido colega assíduo de Alfred Schütz e Friedrich Hayek, os quais, respectivamente, feriram de morte os esquemas pseudocientíficos de Freud e Marx-Engels, para ele a fenomenologia e os aspectos socioeconômicos não eram senão adendos ou derivados da cosmogonia inspirada pelos mitos humanos; esta sim, uma espécie de invariável determinante no desenvolvimento de todas as civilizações. Parece que, em grego arcaico e outras línguas pregressas, a expressão "cosmos" significava algo como ordem, ou talvez desígnio. Voegelin não precisou deste dado etimológico para embasar sua filosofia da história, da religiosidade ou da consciência, mas ela mesma o pressupõe e talvez seja de suas premissas a mais fundamental.
Voegelin migrou para os EUA depois de ser demitido e perseguido após o Anschluss que anexou a Áustria à Alemanha em 1938. Mas não embarcou no ingrato e oportunista ôba-ôba que fez a fama novidadeira dos integrantes da Escola de Frankfurt e de tantos outros que na ocasião também se haviam exilado na América. Seu pensamento foi muito além do mero ódio de si mesmos difundido sob a película filosófico-poética do inconformismo de ocasião sociodesconstrutivista. Voegelin preferiu aceitar o desafio de ser fiel a seu pensamento, à experiência real de sua vida, ainda que lhe custasse clamar no deserto. Pode, sim, ter sido uma tentativa solitária de compreender e explicar a desordem do seu tempo, mas uma tentativa de proporções magníficas.