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E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?

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Demasiado Sério para Não Ser Tratado como Brincadeira

Por Ricardo P Nunes

       Com certa boa vontade, não é lá tão difícil notar que, no fundo, a trajetória da vida humana tem algo de tragicômico. Transmitir essa dicotomia em exemplos ou imagens, porém, requer um talento intuitivo incomum. Em E aí, meu Irmão, Cadê Você? os irmãos e diretores Joel e Ethan Coen (de Fargo e Onde os Fracos não têm Vez) demonstram possuir esse privilégio.

     O título é uma brincadeira tirada da comédia Contrastes Humanos, dirigida por Preston Sturges, em 1942. Mas se "baseia" sobretudo na mais antiga das jornadas do herói, a Odisseia, segundo fica estampado logo na introdução do longa (o que poderia ter ficado velado ou subentendido). Acontece que essas curiosas referências já denotam a bem humorada e genial intenção de mostrarem que o roteiro da existência dos seus protagonistas pode ser uma paródia sobre um clássico, mas nem por isso menos aventuresca, dolorosa e dignificante ao final.

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Os irmãos Joel e Ethan Coen: a arte de nos pregarem peças

       Repleto de simbolismos sobre a epopeia da vida — embora os Coen aleguem não fazerem essas inserções de caso pensado em suas obras —, o filme aborda essa sina com a mesma resiliência com que o personagem Everett Ulysses (George Clooney) tenta driblar suas vicissitudes. Ulisses é o nome latino para o Odisseu de Homero, do qual Everett arremeda os famosos ardis de forma um tanto atabalhoada para fugir da prisão e voltar para casa antes que sua esposa Penny (redutivo de Penélope) se case com outro pretendente. Meio calhorda, com um bigodinho à la Clark Gable e os cabelos besuntados de brilhantina, seu gênio cético e objetivo constitui, porém, um contraponto à parvoíce ingênua dos dois companheiros de sela que ele convence a darem no pé juntos e que consigo compartilharão os infortúnios desde então.   
       Para articular na trama as referências enviesadas à Odisseia, como ao cego que enxerga o futuro, as nereidas, o gigante perverso e caolho, a viúva de um marido vivo, as correntes que entrelaçam a sorte dos que estão no mesmo vagão do destino, aproveitam para incluir nesse rol estereótipos típicos do velho Mississippi. De lambuja, os vícios mitológicos como que se desmistificam ao serem incorporados por parentes inescrupulosos, políticos vigaristas, racistas ultrarradicais, lavadeiras traiçoeiras, gângsteres e até pelo músico negro que encontram numa encruzilhada afirmando ter vendido a alma ao diabo para se tornar um virtuose do violão (uma menção ao lendário Robert Johnson).

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Everett (George Clooney) e seus comparsas: a razão não é a mesma para todos

      De tão bem encaixado o roteiro, embora episódico, como não poderia deixar de ser, ele se cumpre por si mesmo sem digressões ou pontas soltas. Assim, talvez seja excessivo ou supérfluo aduzir uma moral da história além da intriga que o argumento se contentou em contemplar. Mas não o deprecia pensar que ao transportar o cenário para o sul dos EUA da época da Grande Depressão, o enredo nos remete à ideia da atemporalidade da grande comédia humana. Ou até ao mito do pecado original, quando os três personagens principais começam a vida, ou melhor, o filme, numa colônia penal sem sabermos que culpa carregam, e na fuga iniciam a viagem longa e repleta de bordoadas e decepções que terão de cumprir em busca de redenção. 
 


     
 
 
 
 
 
     
    Com toda essa mistureba, no entanto, o resultado é uma daquelas comédias que não pretendem ser comédia, ou seja, das melhores do gênero. Como se quisessem atenuá-la, um blues cru e choroso perpassa a maior parte das cenas, cantados algumas vezes na íntegra pelos personagens, além de um que outro country de bandolim que gera certos contrastes de equilíbrio. Aliás, a despeito da dúvida de se se tratava de filme de aventura ou comédia, o Globo de Ouro concedido a Clooney como melhor ator de comédia/musical pareceu pacificar a questão.
     Mas assim como a Odisseia é muito mais que as meras aventuras que a constituem, E aí, meu Irmão, Cadê Você? é para ser curtido como uma deliciosa brincadeira visual, mas pode sim ser tomado por algo bem maior que simplesmente isto.

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"hão de dar com o tesouro no fim de um longa jornada, mas não será o que imaginam"

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