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Papel reciclado

Dois Lados do Paraíso

Passado e futuro como uma oposição entre fé e esperança

By Ricardo P Nunes

     Certa vez, ao lhe questionarem sobre o que eram afinal os chamados mitos de origem, o célebre etnólogo francês Claude Lévi-Strauss declarou que se fizessem tal pergunta a um ameríndio ele responderia: “são histórias do tempo em que os animais falavam”. Mas, se pensarmos bem, mesmo na cultura ocidental há muitos indícios de que uma fauna fantástica foi precursora da personificação de nossas primeiras deidades — não menos fantásticas. E talvez não seja gratuito mencionar que ao final da cosmogênese judaico-cristã, ainda que possessa, uma serpente foi coadjuvante.

   A impotente constatação de não sermos a causa de nós mesmos, como escreveu Santo Agostinho[1], nos remete à hipótese de que algo sempre nos precedeu. A questão de se Deus ou a natureza talvez não passe de uma metonímia. Admitimos que sua forma visível, o mundo, nos é anterior, e com ele seus múltiplos seres. Assim, em alguma medida o natural nos fornece um parâmetro, um paradigma que nos projeta e no qual nos projetamos.

    E não apenas em sua dimensão teológica. Etnias de vários continentes agrupam-se em clãs conforme as espécies endêmicas da região. Como o parentesco e o totemismo, o bioma também lhes presta uma referência simbólica para a organização social. Há o clã da cotia, do jaguar, do corvo, da formiga ou do lambari. Se o animismo, como suspeitou Edward Tylor, é de fato um estágio cosmogônico primordial[2], animais e plantas haveriam de ter aí a primazia.

    Como a morte, o recuado passado nos reporta a um lugar onde perdem sentido as categorias, as aparências, os talhes. Ao confabular suas origens remotas em busca de uma baliza rumo ao incerto destino, o grupo tribal e o populoso Ocidente ressentem-se de uma danação, da perda de um reino de seres distintos apenas em superfície. Extraviados sem culpa em um ambiente hostil, é imemorial a evocação de um plano aprazível, farto e igualitário. A Idade de Ouro[3], o Éden, Xangrilá, o Eldorado, Atlântida ou a época transparente “em que os animais falavam”.

     Uma constatação, porém, pode abalar os encantos desse presumido passado: a de que, menos recorrente, também sucede uma espécie de recíproca. Diante de uma realidade próspera e acolhedora, o idealizado passado tende a decair, transmutado em um estágio transitório e precário que apenas teria servido de preparação ou estímulo para o aperfeiçoamento vindouro.

    Um outro revés o afeta, a variação no “quando” o situam. Embora sua intenção fosse suprimir a crença em tal lugar beatífico, certos eventos postulam sua possibilidade: as momentosas ocasiões em que a história inteira é tida como uma lenda armada pelo pretérito em conluio com um odioso presente, quando então surge a crença em que a promessa de um mundo terreno pleno de harmonia e abundância se cumpra no futuro. A esperançosa imagem de um mundo diáfano persiste, portanto, por trás das dimensões temporais para onde a deslocam. Arbitrárias, todavia, segundo o recatado sofrimento ou a rebeldia incontida.

     Na Roma Antiga, a imagem totêmica da loba capitolina amamentando Rômulo e Remo, que no princípio consubstanciava a ideia nostálgica de uma origem pastoril ou silvícola, a que muitos anos depois o poeta Virgílio tentaria resgatar, converter-se-ia em emblema das violentas tramas políticas que marcaram a consolidação da república; e, mais tarde, no apogeu dos césares, serviria como ornamento a denotar sua gloriosa ascensão desde uma indigente e brutal orfandade.

   Arruinado o Império, já não era mais possível reatar aquela antiga comunhão natural. Mas mesmo tendo há muito abandonado essa narrativa, digamos, mito-poética, preservamos a analogia dos arquétipos. O mais famoso dos bestiários medievais, a sátira de Raimundo Lúlio, indica que passamos a conceber as diferentes espécies animais como estereótipos dos vícios e virtudes da nossa conduta moral.

    Mais adiante, já confortável em seu ponto e minuto no mundo, o da emancipação do Estado moderno, do qual foi arauto e rebento dileto, Thomas Hobbes presumiria com pessimismo nossos primórdios. Espécie de tábuas mosaicas da contemporaneidade, seu Leviatã instilou uma mutação naquela antiga anamnese paradisíaca. Inspirado também nas notícias sobre a suposta barbárie que grassava no Novo Mundo, sua versão dos tempos primitivos nos inculcou a ideia de uma pré-história povoada não mais por uma “animalidade” genérica e arquetípica, mas por um “animalesco” cru e individual: nós mesmos, quando ainda não falávamos.

    Passando a imaginar feras, matilhas e covis, concluímos que havíamos sido, isso sim, uma alcateia de lobos famintos, territorialistas e abstinentes, numa luta de todos contra todos em uma vida, como diria Hobbes, “solitária, miserável, sórdida, breve e atroz”[4].

   Pouco antes, porém, sob os deletérios efeitos das guerras religiosas que então ensanguentavam a Europa, os mesmos nativos que deram a deixa para o esquema de Hobbes[5], serviram de contraponto para a reflexão de Michel de Montaigne sobre as sacras virtudes do homem em estado natural. Era outubro de 1562, em Rouen. Como todo o povo, ele também acudiu à rua para ver três tupinambás trazidos do Brasil. Mas a impressão que lhe despertaram, no entanto, foi inversa à que tinha dos seus compatriotas.

Escreveria ele:

                                 

“Achamos que são bárbaros, e não nós que os superamos em toda espécie de barbárie. [...] Não lutam para conquistar novas terras, pois ainda desfrutam da liberdade natural que, sem trabalhos nem penas, lhes dá tudo que necessitam e em tal abundância que não precisam alargar seus limites. Encontram-se ainda nesse estado feliz de não desejar senão o que as necessidades naturais reclamam; o resto é-lhes supérfluo. Entre os da mesma idade chamam-se irmãos; filhos, aos mais novos, e de pais aos mais velhos. Estes deixam a seus herdeiros a posse dos seus bens em comum, só com o que a natureza concede a suas criaturas ao depositá-las no mundo” [6].

 

    Estava dado o novo protótipo para as sociogêneses seguintes. Quando John Locke e Rousseau quiseram reivindicar a razão ou contestar o ancien régime ganharam profundidade os mitos da mente vazia e do bon sauvage. O Arcadismo talvez tenha sido um derivado estético daquela tensão política. No Brasil do séc. XIX, esse mesmo e virtuoso estado natural refletiu-se no indigenismo livresco em nossa busca romântica por uma identidade nacional.

  Pela mesma época, Karl Marx concebia uma história da humanidade dividida em etapas segundo seus modos de produção econômica. Embora não tenha se aventurado numa pré-história, sua teoria institui uma natureza edênica ancestral ao pressupor que um regime escravista havia fundado a civilização ocidental; e o comunismo proletário que prescrevia para o futuro flertava com uma espécie de paraíso conquistado.

    O Iluminismo e o subsequente entusiasmo cientificista, embora por vias e motivações antípodas, também tratariam de decantar as narrativas místico-românticas. O “fluxo espiralar” de Vico e a “escada” de Condorcet prefigurariam o que o advento das primeiras escavações sistemáticas e suas classificações arqueológicas em “idade da pedra, do bronze e do ferro” iriam fomentar: a divisão da história sociocultural em períodos cronológicos mentais, como os “três estados” de Comte e o “barbarismo, selvagismo e civilização”[7] de Lewis Morgan. Além de Spencer, Darwin e Alfred Wallace.

     Com o andar da carruagem, ambas as perspectivas — a de uma prístina era gentil e equânime e a de uma pré-história alheia e bestial —, convergiram para o uso dos instrumentos metodológicos que o avanço científico lhes oferecia. Mas, longe de uma conciliação, o que resultou foi que ambas encontraram justo ali suas próprias provas para reiterarem seu mútuo antagonismo. Uma procurou na especificidade etnográfica a confirmação de seus princípios (cujo fundamento era não haver princípios), o que deu em um relativismo débil e estéril. Enquanto que à segunda, a qual teve nos epígonos da Escola Austríaca de Economia e no materialismo cultural seus propositores mais contundentes, escapou entender que, em última instância, são convicções ideológicas o que subjaz à ação humana.

     Sentimentalidade ou Razão insinuam-se na busca por conhecimento quando e tanto mais uma delas procura desdenhar a outra na busca por onde situar o lugar do nosso paraíso aqui ou além. Que se danem os fósseis, os cataclismos geológicos, as profecias cumpridas ou a estatística matemática, toda tese sempre suscitará uma antítese contra os tendenciosos germes que em alguma medida a contaminam.

   Voltando ao núcleo do tema, o da hipotética perda de uma pureza e o atávico desejo de recuperá-la, creio que ele adquiriu uma nova  versão no dilema contemporâneo da oposição Natureza versus Cultura. Pretender abordá-lo de forma científica é ignorar de saída o próprio conflito interno que o torna irredutível a um denominador comum. Essa nova formulação, portanto, no fundo não passa de um verniz de objetividade para um antigo e insolúvel problema filosófico.

     A ascensão do psicologismo pode nos fornecer uma terceira via, a de trazermos a questão para a órbita do indivíduo: se os caracteres cosmogônicos estão condicionados por um estado de coisas, circunstâncias ou, sobretudo, pela índole de quem os conjura, e se se pode projetar o ápice do seu florescimento em qualquer das três dimensões do tempo, deve ser porque sua natureza latente reside em nós mesmos, e não alhures. Mas o curioso é que o fundo histórico em que Freud plantou as origens das pulsões e traumas do seu mal estar da civilização foi justamente o de um mundo ancestral povoado por fábulas mitológicas sobre personagens instintivos[8].

     Assim, embora me arrisque a voltar à estaca zero, não me furtarei um epílogo: como na erudita anedota sobre um certo teólogo que ao cabo de uma vida de extenuantes estudos sobre debates teológicos suspeita perplexo que toda a teologia não passa de um gênero literário, Lévi-Strauss, ao fim de suas milhares de páginas etnológicas sobre os mitos de origem, reconheceu que elas mesmas, suas próprias teorias, podiam constituir também um mito — um mito sobre os mitos.

Notas

[1] Cf. Confissões, Cap. VI. Agostinho de Hipona (354 - 430 d. C.).

[2] Cf. DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Pág. 35 ss. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [orig. 1912].

[3] Virgílio, c. 29 a.C, versejou sobre um período em que a terra foi propriedade comum e abundante até que uma Deusa a degenerou (Geórgicas, Canto I, 125-28); e, no primeiro século da crucificação, Sêneca discorreu sobre um suposto homem em estado natural e uma tal Idade de Ouro (Cartas a Lucílio, XC).

[4] HOBBES, Thomas. Leviatã. Cap. XIII. São Paulo: Martin Claret, 2013 (orig. 1651).

[5] O holandês conheceu os relatos sobre as guerras tribais e seus tenebrosos rituais canibalescos vindos do Novo Mundo, como a publicada na Alemanha, em 1557, sob o título: História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com esta Impressão (tão bem conhecida hoje apenas como Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden). 

[6] Cf. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Dos Canibais, livro I, cap. XXXI. São Paulo: Ed. 34, 2016 (orig. 1580).

[7] Esse arranjo tripartite da percepção histórico-temporal também apareceu nas representações teológicas. No séc. XII, Joaquim de Fiore propôs três períodos: a Idade do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. Blaise Pascal invocaria três eras históricas equivalentes às fases experimentadas pelo indivíduo: Infância, Juventude e Maturidade (o que lembra a noção teosófica sobre a relação entre filogenia e ontogenia biológicas, na qual as fases embrionárias corresponderiam às fases evolutivas das próprias espécies ao longo da história).

[8] Cf. FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2002 (orig. 1913).

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